Arte e cultura indígena Kaingang na Aldeia Urbana Kakané Porã

Arion Wolff
5 min readOct 23, 2022
Foto: Rafael Silva/COHAB

A ideia de uma aldeia urbana pode parecer estranha à primeira vista, partindo do preconceito humilhante de que o indígena pertence apenas à mata e deve permanecer nela. Entretanto, a aldeia urbana Kakané Porã (“Fruto bom da terra”, em Kaingang) de Curitiba mostra que o argumento popular de que o indígena na cidade ‘deixa de ser índio’ é infundado.

De acordo com o artigo ‘Kakané Porã: um documentário sobre a primeira aldeia urbana do sul do Brasil’, a comunidade de Kakané Porã antes vivia espalhada pela cidade e após anos de luta judicial conseguiram um desfecho através de um acordo entre a Prefeitura Municipal, Cohab-PR e Funai para criar a primeira aldeia urbana de Curitiba, estabelecida no bairro Campo de Santana. O conjunto habitacional abriga 170 pessoas, entre Guaranis, Kaingangs e Xetás, as únicas etnias indígenas ainda presentes no Paraná. As três usam artesanato como principal fonte de renda ou como complemento.

A arte indígena data desde antes da existência do Brasil, antes do descobrimento e da invasão. Apesar de séculos terem passado, os povos nativos desta terra lutam arduamente para manter viva a cultura e tradição de seu povo.

Normalmente a ‘arte indígena’ é vista como algo do passado, artesanato, artefatos rudimentares, primitivos. Porém, surpreendentemente, o tempo passou para todos, concomitantemente a cultura indígena continuamente cultiva a tradição, mas também abraça a inovação. A arte indígena contemporânea existe e produz diversos artistas que são usualmente ‘catalogados’ e esquecidos. Abandonados em acervos ou impedidos pela burocracia em busca da exposição formal.

Em uma entrevista com um dos líderes da aldeia urbana Kakané Porã, Leandro Koatan dos Santos, representante dos artesãos indígenas em Curitiba e no Paraná, conta um pouco sobre a arte e a cultura ancestral de seu povo. “Como eu trabalho com artesanato já há uns 30 anos, eu costumo dizer que o artesanato é uma arte milenar, que é passado desde os avós e os pais da gente, e vai passando, de geração em geração. O artesanato a gente fazia para se enfeitar, para as festas, as danças e sempre que estávamos alegres, comemorando, fazendo danças a gente utilizava o artesanato para se enfeitar. Desde o cocar, colar, pulseira, brinco, essas coisas assim, mas hoje ainda é costume a gente fazer as nossas danças, nossas comidas típicas, mas o artesanato hoje a gente também usa como um meio de sobrevivência.”

Em Curitiba contamos com alguns museus que apoiam a arte contemporânea e cultura indígena, principalmente o Museu de Arte Indígena (MAI), inaugurado em 16 de novembro de 2016 no bairro Água Verde de Curitiba, sendo o primeiro museu particular do Brasil dedicado exclusivamente à produção artística dos indígenas brasileiros. O MAI conta com um dos maiores acervos do mundo nesta área.

“Bastante artesanato meu é vendido no Museu de Arte Indígena, ali no Água Verde, bem perto do cemitério, tenho muitas peças que estão lá. Eu também vendo na aldeia e nas feiras eu dei uma parada, então estou vendendo mais na aldeia e através do museu.” Comenta Leandro Koatan, que especifica que parou frequentar as feiras de artesanato por conta da pandemia causada pelo Coronavírus (covid-19).

O Museu de Arte Paranaense (MUPA) também cede espaço para artistas indígenas contemporâneos, como a recente performance da artista Uýra e a exposição arqueológica “Povos Indígenas do Paraná” que se encontra em cartaz. O Museu Oscar Niemeyer (MON) também expõe de forma mais singela a arte indígena contemporânea através do artista Gustavo Caboco na exposição Afinidades, em que ele questiona onde estão os artistas indígenas contemporâneos no MON, fazendo um paralelo com o fotógrafo indígena originário do Peru, Martin Chambi, um dos primeiros grandes fotógrafos indígenas da América Latina e também colocando em pauta como é burocrático o processo para expor arte.

A arte indígena contemporânea junta a ancestralidade e a atualidade, ilustrando, refletindo e criticando, mostrando através da arte que seu povo existe e está aqui, falando alto e em todas as línguas, pedindo um momento de atenção para recuperar seu espaço de direito.

Como disse o autor e artista Jaider Esbell do povo Macuxi em um artigo para a revista Select “Não há como falar em arte indígena contemporânea sem falar dos indígenas, sem falar de direito à terra e à vida.”

Kaingangs, Macro-Jê, Kamé e Kairu.

A língua Kaingang é uma das línguas da família Jê, que se integra ao tronco Macro-Jê. O Kaingang e o Xokleng (língua próxima ao Kaingang, hoje apenas falada em Santa Catarina) formam o conjunto restrito das línguas e culturas Jê do Sul (ou Jê Meridionais). Os Kaingangs estão distribuídos entre Paraná, Santa Catarina, São Paulo e Rio Grande do Sul, totalizando 45.620 no Brasil (Siasi/Sesai, 2014). Representam a terceira maior etnia indígena do Brasil, atrás apenas dos Ticuna e dos Guarani (IBGE 2010).

“O grupo kaigang é dividido em dois grupos, antigamente no passado, bem lá no começo, fala desde nossos bisavós que contavam as histórias para nós, que um casal teve filhos gêmeos e dentro da nossa cultura kaigang, quando nascia crianças gêmeas, no entender do grupo kaingang […] eles entendiam que um era do mal e outro do bem, e como eles não sabiam decidir quem era do bem e quem era do mal eles às vezes matavam um ou os dois, mas a mãe dessas crianças para não deixar acontecer isso ela separou os dois, aí foi formado os dois grupos kaingang kamé e kairu. No nosso entendimento o grupo kamé é um grupo estrategista e o kairu um grupo mais guerreiro. Então foi assim que foi separado os dois grupos, e até hoje as aldeias assim de origem lá no interior esses dois grupos estão sempre brigando pelo poder, para ficar um grupo mandando na comunidade, administrando a aldeia. Sempre estão guerreando no entender deles, não se ‘matando’, mas disputando politicamente.” Conta Leandro Koatan.

A cultura indígena é parte essencial da comunidade, se tornando crucial procurar conhecer, vivenciar e entender como funcionam esses saberes para compor uma fundação social e cultural na qual prevaleça a compreensão e a equidade, tornando-se hábito a criação de vínculos constantes e de diálogo entre as diversidades.

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